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13/02/2024

Senta comigo amanhã

Senta comigo amanhã

 

Encarei os olhos tristes, as rugas formando linhas do tempo, cada uma delas contando histórias de alegrias e tristezas que o marcaram para sempre.

A vida havia sido dura, mas ele foi ainda mais.

Da sua boca saíam as mais bonitas poesias, a saudade encravada em seu coração por uma infância que não mais voltaria.

Lembro quando eu era criança. Sentávamos em cadeiras de plástico na rua pouco movimentada, em uma época em que não haviam distrações, e conversávamos, vendo os poucos carros passarem no meio da noite. Às vezes falávamos sobre o tempo, outras sobre as memórias felizes que partilhávamos, sobre como eu pedia para que comprasse sorvete e ele me dizia que a barraquinha estava fechada. Não estava. Mas, talvez, algum outro dia conseguiria comprar uma guloseima com a qual eu me deliciaria.

Carregava-me no colo toda vez que eu chorava, balançava-me na rede sempre que eu pedia, mesmo quando seus braços estavam cansados, levava-me aos igarapés, onde eu ficava em seu colo na água rasa.

Sempre dizia como queria me levar ao lugar onde nasceu. Um dia o fez. E lá estava eu, vendo o sorriso de menino no rosto de um homem que tinha vivido tantas coisas. Descobri a inspiração para suas poesias. Sua musa era a Veneza Brasileira, coberta das águas que ele queria se banhar até o céu escurecer.

Queria me dar tudo o que podia e que não podia apenas para me ver sorrir. Eu, ainda jovem não percebia como isso me faria falta.

Saudade. Sentimento indescritível que fazia meu peito apertar. Dava-me vontade de sorrir e chorar ao mesmo tempo.

Será que se soubesse teria aproveitado mais? Amado mais? Abraçado mais? Beijado mais? Quando iríamos à pracinha de novo?

Queria voltar para aquela infância, um mundo distante eternizado e fotografado pelos meus olhos pequenos. Não sabia se as memórias eram minhas ou dele, mas meu coração sentia todas elas como se as tivesse visto acontecer, mesmo em uma idade tenra que não deveria se lembrar.

Mas estavam lá.

Às vezes as coisas simples são as que mais importam.

Eu cresci.

Os sorrisos foram ficando para trás.

Agora eu já conseguia comprar o sorvete para mim mesma.

Mas havia uma distância enorme entre nós. Eu não mais podia vê-lo com facilidade, não conseguia que me embalasse na rede quando eu queria chorar porque o mundo havia sido cruel. Queria seu colo.

Perguntava-me se algum dia conseguiria recriar a felicidade infantil quando nada mais importasse, apenas aquele momento. Poderia voltar àquela casa, sentar nas cadeiras de plástico e assistir à rua vazia? Poderia ser ninada de novo?

Como doía não reviver cada segundo.

E foi por isso que sussurrei para mim mesma:

“Vô, senta comigo amanhã.”

 

Ann H. Campbell

Ann H. Campbell

Ann H. Campbell é uma escritora brasileira radicada nos EUA. Apaixonada por romance, decidiu que escreveria tanto para o público jovem adulto como para o público adulto.

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